A escola se prepara para a realização do PRÊMIO ARTE 2008. Os alunos que escolheram a categoria (teatro) fazem suas preparações através de reuniões e bastantes ensaios. Vale salientar que eles farão uma apresentação teatral baseada nas obras de Bernardo Guimarães (Escrava Isaura) e Inocência (Visconde de Taunay). Veja a seguir o resumo das obras e fotos dos ensaios.
ESCRAVA ISAURA (Bernardo guimarães)
No livro são contadas as aventuras e desventuras de uma bela escrava mestiça em busca de sua liberdade. Seu enredo pode ser dividido em três partes:
Na primeira parte, Isaura está na fazenda em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, vivendo sua vida de escrava bem prendada, mucama da noiva do filho de seus donos originais. Porém, ela é importunada a todo o momento por alguém querendo cortejá-la, inclusive o seu sinhô novo, Leôncio. Por ter essa paixão por Isaura, Leôncio não a liberta, como sua mãe havia pedido antes de morrer.
Mesmo assim, o pai de Isaura, Miguel, conversa com o pai de Leôncio e faz um trato no qual ele dará 10 contos de réis pela liberdade de sua filha. Ao chegar com a quantia na casa onde Isaura é escrava, eis que chega uma carta dizendo que o pai de Leôncio morreu, dando uma desculpa para Leôncio não libertar sua escrava.
Sem restar outra escapatória para Isaura, Miguel usa os 10 contos de réis que tinha para comprar sua alforria em uma fuga. Levando o romance ao seu segundo estágio.
Os intentos de Miguel são de chegar a outro país, mas enquanto procura por condições de sair do Brasil eles vão para a cidade de Recife. Lá eles usam nomes diferentes e ficam recolhidos em sua casa.
Como Isaura tem uma beleza estonteante, não passa despercebida a Álvaro, um jovem e rico rapaz órfão de pai. Mesmo tentando ficar escondida, Álvaro se apaixona desde a primeira vez que a vê e a ouve cantar, rondando sua casa até que um dia ele ajuda Isaura e a seu pai, conseguindo assim uma brecha para conversar com ela e a convidar para um baile. Após alguns argumentos, Elvira, nome ao qual Isaura atendia em seu disfarce, aceita e vai ao baile.
Com sua habilidade no piano e sua beleza exótica, Elvira encanta a todos no baile, menos a Martinho, sujeito baixo e ganancioso que vê em Elvira a escrava Isaura descrita em um folheto anexado a um jornal, uma chance de ganhar o dinheiro da recompensa.
Martinho se comunica com Leôncio, que dá a ele direito de prender a sua fugitiva, mas depois se arrepende e vai ele mesmo a Recife para trazê-la de volta. Ao chegar lá, ele fala com Álvaro e têm uma pequena discussão que acaba vencendo e levando Isaura de volta.
Quando chegam novamente na fazenda e Leôncio coloca Isaura em reclusão completa inicia-se a terceira fase da narrativa. Agora seu algoz inventa um plano maquiavélico para continuar com a sua escrava favorita por perto sem deixar sua mulher, Malvina, com ciúmes: ele coloca como condição para a liberdade de Isaura seu casamento com o jardineiro da fazenda, Belchior.
Enquanto isso, Álvaro não descansa até descobrir uma forma de ter Isaura de volta, chegando até a ir a corte a procura de informações. Nessa viagem ao Rio de Janeiro, ele descobre que Leôncio está falido, compra todas as dívidas dele e legaliza a carta de desapropriação dos bens.
No momento do casamento arrumado de Isaura e Belchior, Álvaro chega e diz que tanto Isaura quanto tudo mais que pertencia a Leôncio agora é dele. Leôncio, ao ver que perdeu todos os seus bens e Isaura para Álvaro, se mata dando um tiro em sua própria cabeça.
Análise
Contexto social
Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel.
O romance foi um grande sucesso editorial e permitiu que Bernardo Guimarães se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época. O autor pretende, nesta obra, fazer um libelo anti-escravagista e libertário e, talvez, por isso, o romance exceda em idealização romântica, a fim de conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro. O estudioso Manuel Cavalcanti Proença observa que:
Numa literatura não muito abundante em manifestação abolicionistas, é obra de muita importância, pelo modo sentimental como focalizou o problema, atingindo principalmente o público feminino, que encontrava na literatura de ficção derivativo e caminho de fuga, numa sociedade em que a mulher só saía à rua acompanhada e em dias pré-estabelecidos; o mais do tempo ficava retida em casa, sem trabalho obrigatório, bordando, cosendo, ouvindo e falando mexericos, isto é, enredos e intrigas, como se dizia no tempo e ainda se diz neste romance.
Este romance já foi considerado, com bastante exagero, uma espécie de A Cabana do Pai Tomás (1851) brasileiro. Porém, Bernardo Guimarães, ao contrário da romancista americana Harriet Beecher Stowe, detém-se muito pouco na descrição dos sofrimentos provocados pelo regime escravagista. Ele coloca, na boca de alguns personagens, como Álvaro e seus amigos, estudantes no Recife, algumas frases abolicionistas, mas parece tomar bastante cuidado em não provocar a fúria dos seus leitores conservadores. Está mais preocupado em contar as perseguições do senhor cruel à escrava virtuosa e, assim, conquistar a simpatia do leitor.
Bernardo Guimarães faz questão de ressaltar exaustivamente a beleza branca e pura de Isaura, que não denunciava a sua condição de escrava porque não portava nenhum traço africano, era educada e nada havia nela que "denunciasse a abjeção do escravo". O que parece uma escolha preconceituosa e contraditória – contar as agruras da escravidão criando uma escrava branca – talvez seja melhor compreeendido se se levar em conta que a maior parte do público que consumia romances na época era composto por mulheres da sociedade, que apreciavam as histórias de amor.
Somem-se a isso o modelo de beleza feminino de então, caracterizado pela pele nívea e maçãs rosadas do rosto e, principalmente, o objetivo do autor de conquistar a solidariedade do leitor pela escrava, mostrando a que ponto extremo poderia chegar o regime escravocrata: "fisicamente, Isaura não é diferente das damas da sociedade, mas, por ser escrava, é obrigada a viver como os de sua classe, como objeto útil nas mãos de seu senhor", conforme afirma a crítica Maria Nazareth Soares Fonseca.
O autor claramente conseguiu o que queria. A sociedade brasileira do século XIX, que tanto se apiedou das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada. O autor pôde, assim, demonstrar, através do seu sofrimento, o quanto "é vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza". E é claro, a cor de Isaura serve, como afirma o crítico Antônio Cândido, "para facilitar a ação de Álvaro, compreensivelmente apaixonado e decidido a desposá-la, como fez."
Se houve influência, portanto, do romance A cabana do Pai Tomás, talvez tenha sido apenas no que o crítico Alfredo Bosi aponta como referência: a cena da fuga de Campos para Recife, "talvez sugerida pela fuga de Elisa através dos gelos flutuantes de Ohio para a liberdade no Norte e por fim no Canadá". Entretanto, o fato é que, como aponta o crítico, só depois do lançamento de A cabana do Pai Tomás "a literatura brasileira começou a ser povoada de feitores cruéis e de escravos virtuosos".
As personagens
A obra apresenta a tríade comum aos romances populares românticos: vilão, heroína e herói. E, graças à ausência de profundidade com que são construídos, as personagens do romance são planas, estáticas e superficiais.
Isaura, a heroína escrava, é branca, linda, pura, virginal e possui um caráter nobre e demonstra "conhecer o seu lugar": do princípio ao fim, suporta conformada a perseguição de Leôncio, as propostas de Henrique, as desconfianças de Malvina, sem jamais se revoltar. Permanece emocionalmente escrava, mesmo tendo sido educada como uma dama da sociedade. Tem escrúpulos de passar por branca livre, acha-se indigna do amor de Álvaro e termina como a própria imagem da "virtude recompensada".
Leôncio é o vilão leviano, devasso e insensível que, de "criança incorrigível e insubordinada" á adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso, casando-se com Malvina, linda, ingênua e rica, por ser "um meio mais suave e natural de adquirir fortuna". Persegue Isaura e se recusa a cumprir a vontade de sua mãe, já falecida, que queria dar a ela a liberdade e alguma renda para viver com dignidade.
Tomásia é a condessa de Campos, rica e bonita, uma das maiores inimigas de Leôncio, devido as maldades que este praticou contra ela. Antes de se tornar condessa ela era uma camponesa simples, mas depois de rica, se torna uma mulher poderosa que faz de tudo para se vingar de Leôncio.
Álvaro é um rico herdeiro, cavalheiro nobre e de caráter impecável, que "tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista"; um jovem de idéias igualitárias, idealista e corajoso para lutar contra os valores da sociedade a que pertence. Sua conduta moral é assim descrita pelo autor: "Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quacker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionaável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados."
Apaixonado por Isaura, o grande obstáculo que Álvaro precisa vencer é o fato de Isaura ser propriedade legítima de Leôncio. Para isso, vai à corte, descobre a falência de Leôncio, adquire seus bens e desmascara o vilão. Liberta Isaura e casa-se com ela, desafiando, assim, os preconceitos da sociedade escravagista.
Nas demais personagens o processo de construção é o mesmo:
Miguel, pai de Isaura, foge do conceito tradicional do mau feitor. Quando feitor da fazenda de Leôncio, tratara bem aos escravos e amparara Juliana, mãe de Isaura, nas suas desditas com o pai de Leôncio. Pai extremoso, deseja libertar a filha do jugo da escravidão e não mede esforços para isso.
Martinho é o protótipo do ganancioso: cabeça grande, cara larga, feições grosseiras e "no fundo de seus olhos pardos e pequeninos reluz constantemente um raio de velhacaria". Por querer ganhar muito dinheiro entregando Isaura ao seu senhor, acaba por não ganhar nada.
Belchior é o símbolo da estupidez submissa e também sua descrição física se presta a demonstrar sua conduta: feio, cabeludo, atarracado e corcunda. O crítico Manuel Cavalcanti Proença aponta "o parentesco entre o disforme e grotesco, Belchior é o Quasímodo de O Corcunda de Notre Dame, de Víctor Hugo, romance de extraordinária voga, ainda não de todo perdida, no Brasil."
Dr. Geraldo é um advogado conceituado, que serve como fiel da balança para Álvaro, já que procura equilibrar os arroubos do amigo, mostrando-lhe a realidade dos fatos. Quando Álvaro, revoltado com a condição de Isaura e indignado com os horrores da escravidão, dispõe-se a unir-se a ela, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade, Geraldo retruca lucidamente que a fortuna de Álvaro lhe dá independência para "satisfazer os seus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca". O que não é, na verdade, característica restrita apenas à sociedade escravocrata do século XIX.
Malvina, esposa de Leôncio, jovem rica e ingênua, que fica com o tempo barbarizada com o comportamento do marido, com o tempo vai tendo ódio de seu comportamento, depois da misteriosa morte de Leôncio se casa com dr. Geraldo.
Branca Uma jovem rica, ela é irmã de Geraldo, gosta muito de Álvaro mas não se conforma em Álvaro se apaixonar por um escrava. Mas com sua chegada à Campos, ela e Leôncio se tornam cumplices, e fazem planos para separar Isaura de Álvaro.
Rosa Bonita e ousada, nascida na senzala de Leôncio, descobre que é filha de um Coronel que, por coincidência, é pai de Malvina, se engraçou com sua mãe antes dela nascer. Sabendo disso, sua esposa manda quebrar todos os dentes da escrava e matar Rosa, mas a escrava grávida foge para a Fazenda de Leôncio.
Poucos anos depois de Rosa nascer, sua mãe morre, mas Rosa cresce até se tornar uma mocinha. Logo depois que o coronel descobre que Rosa está viva e na fazenda de Leôncio, ele a compra por muito dinheiro, e então a assume como filha.
Obs: Na 3ª edição do livro os personagens: Tomásia e Branca não participam, não existe nenhuma menção sobre eles. Em relação a Malvina, o livro não menciona que ela casou-se com dr. Geraldo. A personagem Rosa, não é filha de coronel algum, é apenas uma escrava.
Linguagem
O tratamento exageradamente romântico que o autor aplica neste livro faz com que ele tenha um caráter mais de lenda do que de realidade, ao contrário de O Seminarista (1872) e O Garimpeiro (1872), em que a descrição regionalista do ambiente físico e social proporciona mais verossimilhança à trama.
Nunca, em A Escrava Isaura, o excesso de imaginação se traduz em "idealização descabida", como afirma Antonio Candido, que se concretiza no plano da linguagem em descrições repetitivas e mecânicas dos personagens, com abuso de adjetivos redundantes. Observe-se a descrição de Isaura quando senta-se ao piano no salão de baile no Recife:
"A fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado ergueu-se altaneiro e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne, que se apresta a desprender os divinais gorgeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das harmonias do céu"
Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Escrava_Isaura"
Na primeira parte, Isaura está na fazenda em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, vivendo sua vida de escrava bem prendada, mucama da noiva do filho de seus donos originais. Porém, ela é importunada a todo o momento por alguém querendo cortejá-la, inclusive o seu sinhô novo, Leôncio. Por ter essa paixão por Isaura, Leôncio não a liberta, como sua mãe havia pedido antes de morrer.
Mesmo assim, o pai de Isaura, Miguel, conversa com o pai de Leôncio e faz um trato no qual ele dará 10 contos de réis pela liberdade de sua filha. Ao chegar com a quantia na casa onde Isaura é escrava, eis que chega uma carta dizendo que o pai de Leôncio morreu, dando uma desculpa para Leôncio não libertar sua escrava.
Sem restar outra escapatória para Isaura, Miguel usa os 10 contos de réis que tinha para comprar sua alforria em uma fuga. Levando o romance ao seu segundo estágio.
Os intentos de Miguel são de chegar a outro país, mas enquanto procura por condições de sair do Brasil eles vão para a cidade de Recife. Lá eles usam nomes diferentes e ficam recolhidos em sua casa.
Como Isaura tem uma beleza estonteante, não passa despercebida a Álvaro, um jovem e rico rapaz órfão de pai. Mesmo tentando ficar escondida, Álvaro se apaixona desde a primeira vez que a vê e a ouve cantar, rondando sua casa até que um dia ele ajuda Isaura e a seu pai, conseguindo assim uma brecha para conversar com ela e a convidar para um baile. Após alguns argumentos, Elvira, nome ao qual Isaura atendia em seu disfarce, aceita e vai ao baile.
Com sua habilidade no piano e sua beleza exótica, Elvira encanta a todos no baile, menos a Martinho, sujeito baixo e ganancioso que vê em Elvira a escrava Isaura descrita em um folheto anexado a um jornal, uma chance de ganhar o dinheiro da recompensa.
Martinho se comunica com Leôncio, que dá a ele direito de prender a sua fugitiva, mas depois se arrepende e vai ele mesmo a Recife para trazê-la de volta. Ao chegar lá, ele fala com Álvaro e têm uma pequena discussão que acaba vencendo e levando Isaura de volta.
Quando chegam novamente na fazenda e Leôncio coloca Isaura em reclusão completa inicia-se a terceira fase da narrativa. Agora seu algoz inventa um plano maquiavélico para continuar com a sua escrava favorita por perto sem deixar sua mulher, Malvina, com ciúmes: ele coloca como condição para a liberdade de Isaura seu casamento com o jardineiro da fazenda, Belchior.
Enquanto isso, Álvaro não descansa até descobrir uma forma de ter Isaura de volta, chegando até a ir a corte a procura de informações. Nessa viagem ao Rio de Janeiro, ele descobre que Leôncio está falido, compra todas as dívidas dele e legaliza a carta de desapropriação dos bens.
No momento do casamento arrumado de Isaura e Belchior, Álvaro chega e diz que tanto Isaura quanto tudo mais que pertencia a Leôncio agora é dele. Leôncio, ao ver que perdeu todos os seus bens e Isaura para Álvaro, se mata dando um tiro em sua própria cabeça.
Análise
Contexto social
Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel.
O romance foi um grande sucesso editorial e permitiu que Bernardo Guimarães se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época. O autor pretende, nesta obra, fazer um libelo anti-escravagista e libertário e, talvez, por isso, o romance exceda em idealização romântica, a fim de conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro. O estudioso Manuel Cavalcanti Proença observa que:
Numa literatura não muito abundante em manifestação abolicionistas, é obra de muita importância, pelo modo sentimental como focalizou o problema, atingindo principalmente o público feminino, que encontrava na literatura de ficção derivativo e caminho de fuga, numa sociedade em que a mulher só saía à rua acompanhada e em dias pré-estabelecidos; o mais do tempo ficava retida em casa, sem trabalho obrigatório, bordando, cosendo, ouvindo e falando mexericos, isto é, enredos e intrigas, como se dizia no tempo e ainda se diz neste romance.
Este romance já foi considerado, com bastante exagero, uma espécie de A Cabana do Pai Tomás (1851) brasileiro. Porém, Bernardo Guimarães, ao contrário da romancista americana Harriet Beecher Stowe, detém-se muito pouco na descrição dos sofrimentos provocados pelo regime escravagista. Ele coloca, na boca de alguns personagens, como Álvaro e seus amigos, estudantes no Recife, algumas frases abolicionistas, mas parece tomar bastante cuidado em não provocar a fúria dos seus leitores conservadores. Está mais preocupado em contar as perseguições do senhor cruel à escrava virtuosa e, assim, conquistar a simpatia do leitor.
Bernardo Guimarães faz questão de ressaltar exaustivamente a beleza branca e pura de Isaura, que não denunciava a sua condição de escrava porque não portava nenhum traço africano, era educada e nada havia nela que "denunciasse a abjeção do escravo". O que parece uma escolha preconceituosa e contraditória – contar as agruras da escravidão criando uma escrava branca – talvez seja melhor compreeendido se se levar em conta que a maior parte do público que consumia romances na época era composto por mulheres da sociedade, que apreciavam as histórias de amor.
Somem-se a isso o modelo de beleza feminino de então, caracterizado pela pele nívea e maçãs rosadas do rosto e, principalmente, o objetivo do autor de conquistar a solidariedade do leitor pela escrava, mostrando a que ponto extremo poderia chegar o regime escravocrata: "fisicamente, Isaura não é diferente das damas da sociedade, mas, por ser escrava, é obrigada a viver como os de sua classe, como objeto útil nas mãos de seu senhor", conforme afirma a crítica Maria Nazareth Soares Fonseca.
O autor claramente conseguiu o que queria. A sociedade brasileira do século XIX, que tanto se apiedou das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada. O autor pôde, assim, demonstrar, através do seu sofrimento, o quanto "é vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza". E é claro, a cor de Isaura serve, como afirma o crítico Antônio Cândido, "para facilitar a ação de Álvaro, compreensivelmente apaixonado e decidido a desposá-la, como fez."
Se houve influência, portanto, do romance A cabana do Pai Tomás, talvez tenha sido apenas no que o crítico Alfredo Bosi aponta como referência: a cena da fuga de Campos para Recife, "talvez sugerida pela fuga de Elisa através dos gelos flutuantes de Ohio para a liberdade no Norte e por fim no Canadá". Entretanto, o fato é que, como aponta o crítico, só depois do lançamento de A cabana do Pai Tomás "a literatura brasileira começou a ser povoada de feitores cruéis e de escravos virtuosos".
As personagens
A obra apresenta a tríade comum aos romances populares românticos: vilão, heroína e herói. E, graças à ausência de profundidade com que são construídos, as personagens do romance são planas, estáticas e superficiais.
Isaura, a heroína escrava, é branca, linda, pura, virginal e possui um caráter nobre e demonstra "conhecer o seu lugar": do princípio ao fim, suporta conformada a perseguição de Leôncio, as propostas de Henrique, as desconfianças de Malvina, sem jamais se revoltar. Permanece emocionalmente escrava, mesmo tendo sido educada como uma dama da sociedade. Tem escrúpulos de passar por branca livre, acha-se indigna do amor de Álvaro e termina como a própria imagem da "virtude recompensada".
Leôncio é o vilão leviano, devasso e insensível que, de "criança incorrigível e insubordinada" á adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso, casando-se com Malvina, linda, ingênua e rica, por ser "um meio mais suave e natural de adquirir fortuna". Persegue Isaura e se recusa a cumprir a vontade de sua mãe, já falecida, que queria dar a ela a liberdade e alguma renda para viver com dignidade.
Tomásia é a condessa de Campos, rica e bonita, uma das maiores inimigas de Leôncio, devido as maldades que este praticou contra ela. Antes de se tornar condessa ela era uma camponesa simples, mas depois de rica, se torna uma mulher poderosa que faz de tudo para se vingar de Leôncio.
Álvaro é um rico herdeiro, cavalheiro nobre e de caráter impecável, que "tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista"; um jovem de idéias igualitárias, idealista e corajoso para lutar contra os valores da sociedade a que pertence. Sua conduta moral é assim descrita pelo autor: "Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quacker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionaável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados."
Apaixonado por Isaura, o grande obstáculo que Álvaro precisa vencer é o fato de Isaura ser propriedade legítima de Leôncio. Para isso, vai à corte, descobre a falência de Leôncio, adquire seus bens e desmascara o vilão. Liberta Isaura e casa-se com ela, desafiando, assim, os preconceitos da sociedade escravagista.
Nas demais personagens o processo de construção é o mesmo:
Miguel, pai de Isaura, foge do conceito tradicional do mau feitor. Quando feitor da fazenda de Leôncio, tratara bem aos escravos e amparara Juliana, mãe de Isaura, nas suas desditas com o pai de Leôncio. Pai extremoso, deseja libertar a filha do jugo da escravidão e não mede esforços para isso.
Martinho é o protótipo do ganancioso: cabeça grande, cara larga, feições grosseiras e "no fundo de seus olhos pardos e pequeninos reluz constantemente um raio de velhacaria". Por querer ganhar muito dinheiro entregando Isaura ao seu senhor, acaba por não ganhar nada.
Belchior é o símbolo da estupidez submissa e também sua descrição física se presta a demonstrar sua conduta: feio, cabeludo, atarracado e corcunda. O crítico Manuel Cavalcanti Proença aponta "o parentesco entre o disforme e grotesco, Belchior é o Quasímodo de O Corcunda de Notre Dame, de Víctor Hugo, romance de extraordinária voga, ainda não de todo perdida, no Brasil."
Dr. Geraldo é um advogado conceituado, que serve como fiel da balança para Álvaro, já que procura equilibrar os arroubos do amigo, mostrando-lhe a realidade dos fatos. Quando Álvaro, revoltado com a condição de Isaura e indignado com os horrores da escravidão, dispõe-se a unir-se a ela, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade, Geraldo retruca lucidamente que a fortuna de Álvaro lhe dá independência para "satisfazer os seus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca". O que não é, na verdade, característica restrita apenas à sociedade escravocrata do século XIX.
Malvina, esposa de Leôncio, jovem rica e ingênua, que fica com o tempo barbarizada com o comportamento do marido, com o tempo vai tendo ódio de seu comportamento, depois da misteriosa morte de Leôncio se casa com dr. Geraldo.
Branca Uma jovem rica, ela é irmã de Geraldo, gosta muito de Álvaro mas não se conforma em Álvaro se apaixonar por um escrava. Mas com sua chegada à Campos, ela e Leôncio se tornam cumplices, e fazem planos para separar Isaura de Álvaro.
Rosa Bonita e ousada, nascida na senzala de Leôncio, descobre que é filha de um Coronel que, por coincidência, é pai de Malvina, se engraçou com sua mãe antes dela nascer. Sabendo disso, sua esposa manda quebrar todos os dentes da escrava e matar Rosa, mas a escrava grávida foge para a Fazenda de Leôncio.
Poucos anos depois de Rosa nascer, sua mãe morre, mas Rosa cresce até se tornar uma mocinha. Logo depois que o coronel descobre que Rosa está viva e na fazenda de Leôncio, ele a compra por muito dinheiro, e então a assume como filha.
Obs: Na 3ª edição do livro os personagens: Tomásia e Branca não participam, não existe nenhuma menção sobre eles. Em relação a Malvina, o livro não menciona que ela casou-se com dr. Geraldo. A personagem Rosa, não é filha de coronel algum, é apenas uma escrava.
Linguagem
O tratamento exageradamente romântico que o autor aplica neste livro faz com que ele tenha um caráter mais de lenda do que de realidade, ao contrário de O Seminarista (1872) e O Garimpeiro (1872), em que a descrição regionalista do ambiente físico e social proporciona mais verossimilhança à trama.
Nunca, em A Escrava Isaura, o excesso de imaginação se traduz em "idealização descabida", como afirma Antonio Candido, que se concretiza no plano da linguagem em descrições repetitivas e mecânicas dos personagens, com abuso de adjetivos redundantes. Observe-se a descrição de Isaura quando senta-se ao piano no salão de baile no Recife:
"A fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado ergueu-se altaneiro e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne, que se apresta a desprender os divinais gorgeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das harmonias do céu"
Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Escrava_Isaura"
INOCÊNCIA
(Visconde de Taunay )
(Visconde de Taunay )
Estudo da professora
Irene A Machado*
ENREDO DE INOCÊNCIA
O acaso no meio do caminho
Cirino não tinha um destino certo quando enveredou pela estrada que ligava a vila de Santana do Parnaíba aos campos de Camapuã, sul da província de Mato Grosso, fronteira de Goiás, Minas Geris e São Paulo. Sua única certeza é que devia seguir “curando maleitas e feridas brabas”(p.22)2, em lugares esquecidos, no sertão. Era igualmente levado pelo desejo de conhecer terras novas, lugares perdidos nos mais diversos pontos do interior da província. Por isso, não hesitou em acompanhar o falante Sr.
Pereira, que, seguindo o mesmo caminho, voltava para casa depois da frustrada tentativa de conseguir remédio para a filha doente. O encontro casual com Cirino lhe trouxe não apenas um parceiro de prosa, mas também o remédio que procurava.
Apesar da gravidade da doença, o Sr. Pereira demorou-se em conduzir o médico até o quarto da filha. Hospitaleiro, ofereceu a Cirino comida farta e pouso. Depois, com muita hesitação, dirigiu-se ao médico em sinal de alerta:
- Sr. Cirino, eu cá sou homem muito bom de gênio, muito amigo de todos, muito acomodado e que tenho o coração perto da boca, como vosmecê deve ter visto...
- Por certo, concordou o outro.
- Pois bem, mas... tenho um grande defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da minha casa e... deve portar-se como... (p.35)
Martinho dos Santos Pereira vivIa só, com a filha, no mais calado sertão. Guardava a jovem dos olhos dos viajantes, pois já havia dado sua palavra que Inocência seria mulher do tropeiro Manecão, que viajava negociando gado e cuidado dos papéis para o casamento. Era grande a responsabilidade de Pereira, já que, no seu entender, as mulheres eram frágeis, inconstantes e incapazes de seguir leis da razão. Para ele, todos os homens representavam um grande risco à sua doce e bela Nocência. Seus cuidados faziam-se ainda maiores porque Inocência era dotada de beleza incomum. Por isso, Pereira dividia com Tico, um anão mudo, a tarefa de guardar a filha. Orgulhava-se o homúnculo de ser “uma espécie de cachorro de Nocência” (p.41).
Contudo, quando Cirino entra no quarto escuro para examinar Inocência e, com a ajuda de uma vela, vê a moça, fica profundamente desconcertado. Mesmo doente, a jovem demonstrava uma beleza impressionante.
Na mesma noite da chegada de Cirino, um naturalista alemão, Meyer, e seu camarada, pedem abrigo na fazenda de Pereira. O entomologista trazia uma coleção de insetos e muitas cartas de recomendação. Entre elas, uma, assinada por Francisco dos Santos Pereira, irmão esquecido do Sr. Pereira. Esse feliz acaso foi suficiente para o bom matuto perder a cabeça de alegria e se colocar totalmente à disposição do alemão. “Esta carta vale, para mim, mais que uma letra do Imperador que governa o Brasil” (p.59), diz, emocionado, o matuto. Como prova de sua satisfação, promete apresentar-lhe a filha Inocência assim que ela se recupere.
Os remédios de Cirino logo trazem a saúde de volta ao corpo de Inocência e, com ela, os traços vitais de sua beleza.
Um dia, após o almoço na casa de Pereira, Inocência é apresentada a Meyer. Diferentemente de Cirino, Meyer não consegue se controlar e faz muitos elogios a Inocência. Enquanto o alemão fala, enrolando a língua, Pereira e Cirino não conseguem disfarçar o mal-estar causado pelo discurso de Meyer. Um momento patético, que abala a todos.
Tornou-se Pereira pálido [...]; Inocência enrubesceu quem nem uma romã; Cirino sentiu um movimento impetuoso, misturado de estranheza e desespero, e, lá da sua pele de tamanduá-bandeira, ergueu-se meio apavorado o anão. (p.65)
Sem poder voltar atrás com sua palavra, Pereira enfiou na cabeça que Meyer queria se aproveitar de Inocência. Passa a vigiar e a controlar os mínimos gestos e palavras de Meyer, deixando a filha aos cuidados de Tico e do doutor.
Doutor enfeitiçado sem remédio para seu mal
Cirino percebe rapidamente que, à medida que cura Inocência, torna-se ele enfermo, acometido pelo mal grave e incurável da paixão. Resolve retomar seu caminho, mas o bom Pereira protesta. É que, quanto mais Pereira suspeitava de Meyer, mais confiava em Cirino. Em nenhum momento percebe que o doutor está perdidamente apaixonado por sua filha, embora o ache meio abatido às vezes. Para evitar que Cirino vá embora, Pereira arranja-lhe muitos doentes. Quanto mais Cirino cura os males alheios, mais se conscientiza de seu triste destino. Pereira jamais voltará atrás com a palavra dada a Manecão e, para isso, gasta todo o seu tempo embrenhado na mata com o naturalista, que vai aumentando, a cada dia, sua coleção de espécies raras de insetos.
Num desses dias, como fosse sair muito cedo com Meyer e Juca para a mata, Pereira encarrega Cirino de medicar Inocência na hora certa. O doutor passa a manhã contando todos os segundo até a hora de poder ver a moça.
Enquanto Tico vai chamar a criada para preparar café, Cirino conversa apaixonadamente com Inocência. Ainda que não se declare abertamente, dá mostras mais que evidentes de seu sentimento. Inocência demonstra igualmente um certo envolvimento. Depois disso, torna-se cada vez mais difícil para Cirino encontrar-se com ela.
Apesar do cerco fechado em que vive a moça, Cirino, tomado pelo desespero, bate a sua janela numa noite de luar e dá voz a sua paixão. Conversam os dois quase num sussurro e, sem muito esforço, descobre que é amado por Inocência. A paixão já não é mais segredo para eles.
O perigo está muito perto
A ira de Pereira atinge o grau máximo no dia em que Meyer, vasculhando a mata perto de seu roçado, cai em grande euforia ao descobrir uma borboleta de uma espécie totalmente desconhecida. Pulando “como um cabrito” (p.103), anuncia que dará o nome de Inocência a seu achado. Pereira recebe a notícia como uma grande ofensa: “Vejam só... o nome de Nocência numa bicharada!... Até parece mangação...” (p.104).
Depois do grande achado, Meyer, exultante e vitorioso, decide partir, deixando Pereira duvidoso quanto ao excesso de suas desconfianças:
- [...] Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola? [...] Hoje estou convencido que o tal alamão era bom e sincero... Olhou para a menina... achou-a bonitinha... e disse aquele despotismo de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem fiar... Às vezes o perigo vem donde nunca se esperou... (p.111-2).
E a vida de Pereira retoma seu curso.
Sem nenhuma esperança, Inocência e Cirno se encontram mais uma vez às escondidas. No laranjal, numa noite de luar, pensam numa solução para suas vidas. Cirino propõe-lhe fuga. Inocência recusa com medo de tornar uma mulher perdida, amaldiçoada pelo pai. Diante do pranto de Cirino, Inocência lembra de seu padrinho Antônio Cesário. Seu pai lhe devia dinheiro e respeitava sua vontade; se Cirino conseguisse convencê-lo a falar com Pereira, talvez eles estivessem salvos. Enquanto se abraçavam felizes e esperançosos, ouvem um assobio seguido de uma gargalhada. Cirino pega Inocência nos braços e a leva para casa. Ao voltar ao laranjal, sente algo cair sobre seus pés, pensa ser assombração. Aterrorizado, ouve um tiro disparado por ordem de Pereira, que vistoriava o pomar junto com um escravo. Cirino corre de volta para seu alojamento, aonde consegue chegar antes de Pereira. Finge não saber de nada. Nesse mesmo dia, parte em busca da ajuda de Antônio Cesário.
Manecão retorna com os documentos prontos para o casamento. Inocência se assusta quando o encontra. Enfrenta o pai e noivo, desafia a palavra que tinha força de lei.
- Eu?... Casar com o senhor?! Antes uma boa morte!... Não quero... não quero... Nunca... Nunca...
Manecão bambaleou.
Pereira quis pôr-se de pé, mas por instantes não pôde.
- Está doida, balbuciou, está doida.
E segurando-se à mesa, ergueu-se terrível
- Então, você não quer? Perguntou com os queixos a bater de raiva.
- Não, disse a moça com desespero, quero antes...
Não pode terminar. (p.138)
Com a ajuda de Tico, que tudo sabia, o grande equívoco de Pereira é desfeito. Fulminado, mas não liquidado. Pereira autoriza Manecão a lavar a honra de sua casa. O tropeiro parte imediatamente.
Desfecho
Cirino, por sua vez, encontra Cesário e, com muita dificuldade, expõe a ele sua situação. Cesário, desconfiado, lhe faz muitas perguntas e, por fim, pede-lhe que faça um juramento. Cirino aceita imediatamente, e Cesário, impressionado com o caráter e os sentimentos nobres do moço, que jurara sem saber o quê, promete-lhe pensar durante oito dias. Se resolvesse ajudá-los, apareceria até o final desse período; caso contrário, valeria o juramento: Cirino deveria desaparecer de suas terras e da vida de Inocência.
No último dia do prazo combinado, Cirino espera ansiosamente ver Cesário quando depara com Manecão. Este lhe dirige algumas palavras desaforadas e, em seguida, pega sua arma e atira impiedosamente no rival. Cesário aparece. Cirino ainda tem tempo de perdoar seu algoz e de agradecer Cesário. Morre murmurando o nome de Inocência.
O destino de Inocência é revelado no último momento da história, quando Meyer apresenta sua coleção com a espécie rara de borboleta à sociedade científica de seu país. Enquanto o naturalista alemão fala euforicamente da jovem que dera o nome a seu achado, o narrador comenta ironicamente que, havia dois anos, Inocência não existia mais.
Crônica de costumes
Uma das características marcantes do regionalismo é a valorização dos costumes típicos do mundo rural, bem como das particularidades do meio natural. O tempo e o lugar são decisivos para a definição dos acontecimentos.
Dentre os costumes regionais típicos, apresentados no romance de Taunay, podemos destacar:
hospitalidade: o sertanejo tem sempre um espaço reservado para os viajantes que pedem pousada. Há também farta oferta de comida, incluindo-se os frutos da região.
privacidade: os viajantes jamais se aproximam da casa do proprietário, nem penetram em seu interior.
preservação da honra: existe uma preocupação em garantir a harmonia entre as ações e as normas do código social, sobretudo com relação à família.
casamento como acordo entre famílias: apesar disso e embora não haja namoro, o casamento é o único meio de a filha se libertar da tirania do pai.
analfabetismo: leitura como um mal, sobretudo para a mulher.
exercício da vingança individual: as pessoas acham que podem fazer justiça com as próprias mãos.
curiosidade: nas cidades, todos participam da vida de cada um.
crendice: as crenças se revelam sobretudo no que se refere às doenças.
juramentos: a impossibilidade de reversão das regras sociais levam as pessoas a jurar por tudo, tendo cada um seu santo protetor.
Em Inocência, a crônica de costumes focaliza não apenas os hábitos e costumes da família, mas também os costumes decorrentes do modo de exploração da terra e dos produtos naturais e, finalmente, os hábitos políticos da nação. Nesse contexto é que a figura do viajante é importante, inclusive como elemento do mundo romanesco apresentado no limite entre documentário e ficção. É através de dois viajantes, Girino e Meyer, colocados pelo acaso no caminho do Sr. Pereira, que se dá a conhecer a família que vivia escondida no sertão.
Esquema fabular das aventuras amorosas
Casamento como resultado de jogo de interesses:
Inocência estava prometida a Manecão.
Constituição do triângulo amoroso:
Aparece Cirino
Amor impossível:
Morte como salvação
Cirino é assassinado por Manecão e Inocência definha-se, morre de amor, a exemplo de Teresa, personagem de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.
Ao se construir a partir desse esquema da fabulação amorosa, o romance Inocência cria um vínculo com os clássicos universais. Contudo, a necessidade de publicar o romance em folhetins, ou seja, em capítulos separados nos jornais diários, obrigou o autor a utilizar uma técnica narrativa extremamente moderna para a época. O desenvolvimento dessa técnica de composição trouxe algumas modificações ao gênero romanesco.
Foco narrativo
O ponto de vista externo define o narrador de Inocência como um narrador onisciente, que é tendência dominante na narrativa romanesca do século XIX. É o modelo clássico, que confere plenos poderes a uma só focalização: tudo é apresentado a partir de um único ponto, com onisciência e onipresença. Esse é, sem dúvida, um modelo narrativo que atende às necessidades do romance regionalista, que focaliza a vida, os costumes, os valores sociais a partir de um único ponto de vista.
Personagens
PEREIRA, O FANÁTICO INGÊNUO
Pereira é o personagem principal, o fio condutor da história, ou melhor, a história é narrada a partir do ponto de vista que ele representa. E o que representa Pereira?
Em primeiro lugar, o patriarca, o pater familias, que dispõe de plenos poderes em sua terra e em sua casa, fazendo valer suas leis e direitos. Em segundo lugar, o sertanejo totalmente comprometido com os valores da sociedade agrária de origem colonial imposta pelos portugueses. Nesse sentido, ele é apenas uma peça desse mecanismo maior. Finalmente,
Pereira é representante de nossa cultura oral. Sem contato com o mundo da escrita, a expressão cultural do sertanejo oscila entre o rigor dos valores e a ingenuidade de quem se formou com aquilo que lhe chegou pelos olhos, pelos ouvidos e pela boca. Pereira fala através de frases feitas e proverbiais — o grande legado da cultura preservado e transmitido oralmente por séculos. Essa é sua sabedoria.
Como os valores da sociedade patriarcal não correspondem necessariamente aos valores da cultura oral, percebe-se nitidamente que o sertanejo fica em desvantagem. Sua ingenuidade, naturalidade e franqueza fazem dele um bruto e um ser atrasado. Sua postura autoritária é a de um bárbaro. Custe o que custar precisa fazer valer o sistema de valores da sociedade patriarcal.
Todavia, a autoridade não se associa muito bem à austeridade na pele de Pereira. Por isso, o exagero em sua perseguição ao alemão, na proteção à filha em nome da honra e da palavra empenhada, faz com que Pereira apresente traços já bem delineados de um fanatismo selvagem, que levou sertanejos do Nordeste ao cangaço e a lutas sangrentas. Pereira reproduz a imagem de um fanatismo ainda romântico, porque atua em nome de interesses individuais.
Como os demais personagens românticos, o comportamento de Pereira se movimenta em torno de um único traço, e isso acaba definindo os tipos estereotipados de personagens que não mudam ao longo da história, as chamadas personagens planas.
INOCÊNCIA
Inocência é filha dos sertões(capítulo XIX), como ela própria se define, mas todos, até seu pai, vêem nela feições de moça da cidade. Para o pai, ela é uma menina, apesar dos 18 anos, bonita, arisca, carinhosa, feiticeira, esquisita. Criada sem mãe, relacionava-se muito bem com as graúnas e os bichos da fazenda. Quando criança, pediu ao pai para aprender a ler.
Inocência é uma sertaneja, mas não aquela sertaneja envolvida com o mundo produtivo da vida rural: não é camponesa, nem pastora, nem doméstica. É apenas uma sertaneja romântica, bela, frágil, doente.
Atravessa a narrativa consumida por duas chamas: a da maleita e a da paixão (Moraes, 1971, p. 96). Aí reside grande parte do mistério que envolve essa personagem, que não é apenas a heroína romântica apaixonada. Inocência é mais uma metáfora calada do que uma personagem: dentro dela se escondem aspectos fundamentais das idéias do romance.
Durante grande parte da narrativa, Inocência é apenas discurso de outro: o que sabemos dela é aquilo que o seu pai nos conta.
CIRINO, O HERÓICO BOM RAPAZ
Cirino é moço da cidade que, antes de se aventurar a percorrer o sertão curando doenças, enfrentou o desafio de transformar suas experiências Farmacêuticas em conhecimento médico. Daí sua disposição em desbravar lugares distantes e perdidos no sertão.
Quando a ação se inicia, conta aproximadamente 25 anos e apresenta-se distintamente: traja-se bem, tem ar circunspecto e decidido. Cirino herdara do pai a facilidade no manejo das ervas e das drogas curativas. Curioso mais que estudioso, enveredara pelo sertão munido de mezinhas e de um livro de medicina, sem, contudo, ter licença para medicar. Graças ao amor que dedicava à profissão, era uma pessoa de nobre caráter.
MEYER, O CIENTISTA BURLESCO
O viajante alemão é uma figura que excede os personagens românticos, criando um contraste com eles. Meyer é um personagem funcional: sua função é criar circunstâncias de ação para outros personagens. Criou a grande armadilha para Pereira, deixando livre o espaço para a atuação de Cirino; criou também condições para que surgisse um outro sentido para Inocência. É em tomo de sua figura que podemos interpretar a grande metáfora do romance, como situaremos mais adiante.
Desde o início, Meyer exprime um comportamento diferenciado. Enquanto o camarada, um homem vulgar, não poupava energia para açoitar o animal que resistia a seguir pelo caminho que trilhavam, Meyer fala calmamente:
— Juque, disse ele de repente com acento fortemente gutural e que denunciava a origem teu-tônica, se porretada chove assim no seu lombo, vóce gosta? (p. 44)
A capacidade de compreensão do cientista se sobrepõe às ações desmedidas do camarada. Levanta hipóteses sobre a conduta do animal. Através de um sinal na estrada, um ramo quebrado, descobre um outro caminho que o leva, junto com seu camarada às terras de Pereira. E era de um lugar para passar a noite que precisavam naquele momento. E conclui ironicamente:
— Eu não disse a vóce, replicou o cavaleiro com voz até certo ponto triunfante. Asno tem razão: para diante há alguma coisa. (p. 44)
Meyer representa um outro olhar sobre a paisagem, diferente até do olhar do doutor Cirino. Para ele a natureza e seus elementos são objeto de conhecimento, guardam os segredos que desafiam sua mente inquieta.
TICO, O ANTAGONISTA GROTESCO
Como cão de guarda de Inocência, Tico investe-se de um poder inacreditável: tudo sabe, tudo vê e é capaz de estar nos mais variados lugares numa fração de segundos. Tico é um olho onipresente e onisciente, mas nada pode dizer.
Quando Cirino vai medicar Inocência ao meio-dia, ele resiste a abrir-lhe a porta; só o faz porque Inocência manda. Mesmo assim, através de gestos grosseiros, manda o doutor permanecer fora da casa enquanto ele vai chamar a cozinheira para fazer café. Desde o início revela-se antagonista de Cirino.
Na primeira noite em que os namorados se encontram no pomar, seu idílio amoroso é interrompido:
Soou [...] um assobio prolongado, agudíssimo, e uma pedra, arremessada por mão misteriosa e com muita força, sibilou nos ares e veio bater na parede com surda pancada, passando rente à cabeça de Girino. (p. 98)
Ainda que os namorados pensassem ser assombração, somente um indivíduo podia ser autor dessa façanha: ninguém mais do que Tico. Embora não tivesse voz, era capaz de produzir ruídos assustadores.
Não é só a condição de ser cidadão que é negada a Tico, mas também sua condição humana. Por ser anão e mudo, portanto, um ser que jamais poderia chegar à possibilidade de disputar Inocência, Pereira confiou-lhe cegamente a guarda da filha. Para Pereira, Tico era apenas um bicho de estimação, sem masculinidade. Tico é um ser desprezível e sua imagem lembra o Quasímodo de Victor Hugo (1802-1885).
MANECÃO, O VILÃO AUSENTE
É muito curioso que o homem a quem Pereira promete sua filha querida em casamento seja o grande ausente da história. Sabemos que ele viajara para negociar gado e para providenciar os documentos do casamento. Nada mais.
Durante a história é impossível fazer qualquer tipo de avaliação sobre sua pessoa que já não esteja carregada pela visão dos outros personagens. Ao mesmo tempo é estranho que uma pessoa sem nenhuma referência, imagem ou personalidade tenha poder de decisão sobre a vida de Inocência e de Cirino. A própria Inocência não tem nada a dizer sobre o homem com quem vai dividir o resto de seus dias.
Manecão é, sem dúvida, um personagem que tem um único papel na narrativa: a ele foi reservada a tarefa de fazer valer a honra da palavra empenhada. Exatamente por estar distante dos episódios, pôde fazer justiça com suas próprias mãos, matando impiedosamente Cirino. Como Pereira, um homem generoso, bem-humorado e de bom coração, poderia cumprir uma missão tão cruel? Afinal, apesar de toda sua aparência autoritária, Pereira é um homem cativante, que conquista simpatias. O contrário de Manecão, que, mesmo ausente, consegue ser antipático. Visto por essa ótica, Manecão é o vilão da história, age em nome próprio e cuida tão-somente de seus interesses. Manecão é, assim, a mais “visível” representação dos valores que dominam na história: os valores invisíveis que decidem sobre a vida das pessoas. Ele não aparece na história, mas aquilo que ele representa não se ausenta um instante sequer.
O sertão de Mato Grosso como cenário de intimidade
O ESPAÇO DA AVENTURA
No romance regionalista, falar do espaço é tratar de tudo que entra para a definição do próprio gênero. A começar pelos personagens, que vivem de tal modo ligados à terra, que muitas vezes suas ações são orientadas pelos elementos naturais, pois nesse tipo de romance há uma interação entre o homem e seu espaço vivencial. No romance regionalista, o espaço natural — campos, estradas, pomares, florestas, bosques, cachoeiras, rios, lagos — é a mais precisa expressão do locus amoenus da tradição clássica, o lugar ideal, harmonioso, pacífico, onde vive o homem natural, puro, sem o mínimo contato com o mundo urbano. Esse “lugar» é o cenário da intimidade dos personagens; tudo o que nele ocorre permanece no âmbito do mais recôndito mundo privado. É como se a vida pública não existisse. O espaço imenso, grandioso e ameno do sertão é o único lugar capaz de abrigar os grandes conflitos do homem.
O leitor de Inocência é introduzido nesse espaço privilegiado desde o primeiro capítulo, sintetizado de modo notável pela epígrafe do escritor francês JeanJacques Rousseau (1712-1778), cujas obras tiveram importância decisiva para o Romantismo, sobretudo no que se refere ao mundo do idílio e da natureza de modo geral. A epígrafe que introduz o capítulo 1 do romance diz o seguinte:
Então com passo tranqüilo metia-me eu por algum recanto da floresta algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que pudesse crer ter primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse interpor-se entre mim e a natureza.
J.-J. Rousseau — O encanto da solidão. (p. 11)
TEMPO CONVENCIONAL E
TEMPO HISTÓRICO
Existem duas datas que definem a duração do conjunto de episódios que constituem a narrativa de Inocência o dia 15 de julho de 1860 e o dia 18 de agosto de 1863. O primeiro é o dia do encontro de Cirino com Pereira; o segundo, o dia em que Meyer apresenta à comunidade científica alemã — a Sociedade Geral Entomológica — seu grande achado em terras brasileiras. Após anunciar o noticiário do evento no jornal local, O Tempo (Die Zeit), o narrador nos informa:
Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’Ana do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade. (p. 148)
Tais referências temporais são os termos da equação para que possamos chegar à noção do tempo e da duração dos acontecimentos narrados; presume-se, portanto, que tais fatos tenham ocorrido entre os anos de 1860 e 1861. Os dois anos que se seguiram constituem um espaço vazio. Entendemos que tal foi o tempo necessário para Meyer vencer a distância que separava seu país das terras brasileiras. Mas é esse tempo “morto” que nos surpreende no final da história e nos leva a refletir sobre os temas centrais da narrativa. É preciso uma reflexão mais aprofundada sobre ele.
ELEMENTOS TEMÁTICOS
Se tivéssemos de encerrar o romance num único módulo temático, fundamental para a definição de conjunto, o tema da aventura seria o grande privilegiado. Em nome da aventura se consagrou o próprio Romantismo. Seguindo a tradição das clássicas histórias de jovens apaixonados, o esquema de motivos e de representação temporal segue a mesma fórmula: encontro inesperado, conflitos familiares, final trágico.
Para que essa estrutura garanta a aventura como a grande unidade temática, há que se considerar os temas que gravitam em torno dela como elementos fundamentais. Dentre eles destacamos:
ACASO
Tudo no romance acontece por acaso, como vimos anteriormente, sobretudo os encontros. Por acaso Pereira se encontra com Cirino; Meyer encontra o obstáculo na estrada; Cirino encontra Inocência; Pereira recebe carta do irmão; Meyer encontra a espécie rara.
A série dos acasos, no romance romântico, insere os acontecimentos dentro de uma outra lógica, que tem a ver com o destino. Graças ao acaso os destinos mudam bruscamente, causando os maiores problemas dentro das vidas estruturadas para perpetuar a tradição. Como força de desestabiização, de questionamento e de riscos, o acaso se constitui num impulso no sentido de colocar os direitos do coração como base para se falar dos demais direitos do homem.
AMOR IMPOSSÍVEL
Sendo as paixões humanas guiadas pelas leis do acaso e não da vontade, o amor que desperta as emoções dos jovens nunca corresponde à vontade dos pais, tornando-se um amor impossível, típica manifestação do amor cortês medieval.
Inicialmente, é importante considerar o amor impossível como um acontecimento inesperado e, por isso mesmo, um agente de desequilíbrio das situações. Enquanto perdura a situação conflituosa, o amor impossível exprime uma situação de impasse que se traduz através da constituição dos triângulos amorosos: o amor não encontra seu par. Daí o desencontro. No romance de Taunay, temos vários triângulos amorosos, dependendo dos elementos que o constituem. Os elementos mudam segundo o ponto de vista em questão:
1. do ponto de vista dos namorados: Inocência, Cirino e Manecão
2. do ponto de vista de Pereira e do ponto de vista de Cirino: Inocência, Meyer, Manecão.
Amor diante da razão social e, conseqüentemente, permanência do statu quo. É uma questão de honra: o pai prefere ver sua filha morta a ter seu nome desonrado. Que nome?... O importante é que a morte garante a pureza, do nome e da filha.
Para Inocência, a morte é a única saída para o impasse a que sua vida foi encaminhada. É a única forma de escapar do compromisso assumido e de não se casar com Manecão; e seria também a única forma de não cair em desgraça se atendesse ao pedido de fuga de Cirino. A morte de Inocência é uma daquelas mortes românticas provocadas pelo acaso. Morte de amor: Inocência livrou-se da febre da maleita, mas não escapou da febre da paixão.
A morte de Cirino é fruto de uma vingança, por isso ele se torna um herói. Morre honestamente, enfrentando seu rival. Ambas são mortes românticas, morte que ataca jovens apaixonados. É a única forma de conservar o encantamento da paixão.
A CIÉNCIA E A PAIXÃO
O grande tema do Romantismo é o confronto entre sentimento e razão. No romance de Taunay, tal problemática foi explorada de modo particular.
De um lado, temos a paixão, que vence a razão de um médico curandeiro. O herói romanesco, diferentemente dos heróis do nosso Romantismo, não é um jovem improdutivo, que pode se entregar as vinte e quatro horas de seu dia às vivências da paixão. O Dr. Cirino amarga seus sentimentos em meio a seus doentes, o que não deixa de ser uma forma de respirar no mesmo lugar onde mora sua amada.
De outro, temos o encantamento do naturalista diante das belezas de Inocência. Ele pode não ter se apaixonado pela moça, mas certamente se encantou com sua beleza a ponto de consagrar seu sentimento num nome científico. De acordo com o ponto de vista narrativo isso significa que
[...] também os sábios possuem coração tangível e podem, por vezes, usar da ciência como meio de demonstrar impressões sentimentais de que muitos não os julgam suscetíveis. (p. 148)
Tal é a sentença de honra ao mérito que foi dedicada a Meyer pelo jornal de sua cidade. O que nos leva a pensar que todo o trabalho de Pereira fora em vão e que Meyer foi, de fato, o único vitorioso. Ele foi o único capaz de consagrar a paixão num evento científico, colocando-se acima dos valores autoritários de Pereira. Nesse caso, o estrangeiro, homem da cidade, soube dar a volta por cima. Foi a vitória da inteligência. Dela estava muito distante o conhecimento prático do doutor, que só entendia das moléstias do sertão.
É preciso considerar também que a ciência, apesar de vitoriosa, está a serviço da paixão. Graças à medicina popular de Cirino, Inocência se salva da moléstia; graças à ciência de Meyer, ela vive eternamente numa outra esfera de existência.
Em vez de oposição, a ciência e a paixão traduzem uma só manifestação: o entusiasmo de Meyer pelas coisas naturais. Borboleta e Inocência são dois lados de um mesmo fenômeno para o cientista. Meyer, que fora ridicularizado por Pereira, confirma para nós a máxima: ri melhor quem ri no fim.
A MULHER COMO CAMPO DE BATALHA
Se levarmos em conta os vários fragmentos em que os personagens e também o narrador exprimem suas idéias a respeito da condição feminina, diríamos que os confrontos de todos esses juízos formam um verdadeiro campo de batalha. Em nome da proteção da tão falada condição feminina, Inocência é praticamente escravizada. Mas essa mesma condição leva os homens a perder a cabeça. Pereira como pai, Cimo como jovem apaixonado, Tico como protetor, Meyer como viajante admirador de espécies raras e excêntricas.
A mulher passa de ser sublime, inocente, guardado numa redoma de vidro, a ser desprezível, ameaçador, inocente, gerador da duplicidade de nomeação da personagem. No final, a duplicidade permanece: como ser inocente, Inocência foi consagrada pela ciência, entrou gloriosa para a alta eternidade; como ser nocivo, foi castigada, queimada pela febre.
A morte de Inocência acaba fazendo valer a superioridade da honra, dos valores, e a inferioridade do amor e das paixões. O par amoroso é liquidado, e a honra de Pereira e de Manecão estão salvas.
Porém, pensando na morte de Inocência, que não nos parece ter sido provocada por nenhuma causa externa, somos levados a pensar em termos simbólicos. Quer dizer, a morte de Inocência pode ser pensada como eliminação da figura feminina submissa, escrava. Nesse contexto, ganha sentido sua resistência de corça: ela disse que não se casaria com Manecão e, de fato, não se casou, o que não deixa de ser uma vitória.
Olhando por esse viés, mudamos sensivelmente o modo de ver Inocência. Se até agora ela era “uma sonâmbula”, um fantoche sem vontade própria, podemos agora vê-la como um ser superior. Se, inicialmente, ela dividia com Cirino o primeiro plano da narrativa, em que o médico parecia ser seu suporte, ao fazer valer sua vontade e não se deixar abater nem por Manecão nem por Pereira, ela se impõe como a verdadeira heroína e personagem principal de toda a trama. A todos ela enfrenta sem a ajuda de Cirino.
A luta que se desencadeou em torno desse tema teve como objeto o corpo; no corpo reside a honra. Com o fim do corpo, deixa de existir o valor e tudo o que nele está implicado. O que resta, então? A liberdade, sem dúvida alguma; visto que em nome dela se fazem muitas batalhas. O que não deixa de ser uma grande ironia.
*Esta análise é composta de excertos do livro Roteiro de Leitura: Inocência, de Visconde de Taunay, de Irene A. Machado, Editora Ática.
A coleção de leitura da Editora Ática ROTEIRO DE LEITURA, que possui a análise dos clássicos da literatura brasileira, é uma ótima fonte de consulta para estudantes, tanto vestibulandos como dos cursos de letras.
http://www.atica.com.br/
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